Luiza Lusvarghi

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O cafetão Romeo (Asier Etxeandia, de Dor e Glória) é ao mesmo tempo líder da gangue, traficante de drogas e explorador de mulheres. Seu principal capanga é Moisés, vivido por Miguel Angel Sivestre, o galã gay de Sense 8, da mesma Netflix, e do novelão Velvet.

Com essa sinopse, era esperado que estivéssemos diante de um dramalhão social, com cenas realistas e muitas lágrimas. Mas nada mais equivocado. É um thriller de ação, com pitadas de comédia, ou melhor de humor negro. Seu criador é o mesmo da Casa de Papel, Álex Pina, em parceria com Esther Martínez Lobato. Da mesma forma que torcíamos para os bandidos em La Casa de Papel, passamos a torcer para as prostitutas, que não possuem exatamente uma ficha muito limpa – os crimes das meninas vão bem além da ilegalidade da profissão que abraçaram, ou por coerção, ou por opção. Aos poucos elas vão se revelando delinquentes e pistoleiras tão cruéis quanto seus opressores, mas representam, sem dúvida, a parte oprimida.

O roteiro é muito bom, os diálogos são impecáveis, com falas inteligentes e bem resolvidas, a história prende do primeiro ao último minuto. No entanto, há algo estranho no ar, e a primeira pista está na direção de arte, na ambientação. Os enquadramentos do bordel e suas dançarinas, ainda que exibidas com seus dramas familiares, filhos que ficaram à espera, amores distantes, enfim, todas as mazelas que compõem o cotidiano de uma profissional do sexo, com surras do cafetão, e ameaças, são acentuadamente voyeurísticos. Quando o cliente diz que vai ficar com a puta que estiver mais excitada e enfia a mão pela calcinha de Gina fica a dúvida se a cena foi feita para mostrar o horror que ela sente por estar ali do ponto de vista do seu sofrimento, ou se esse desespero está retratado apenas para deliciar o cliente e por tabela o espectador que goza com este tipo de humilhação, e acha engraçado.

O veterinário que decide apoiar as garotas, pois é chantageado por elas, bancando o médico de emergência, as cenas no interior da loja de decoração e utensílios domésticos que personificam os desejos de consumo delas mas não passam de cenários, são extremamente ricos e interessantes, pelos contrastes que proporcionam – a casa dos sonhos das garotas é apenas uma vitrine. Outra cena hilária é protagonizada por Coral na piscina do resort repleto de turistas sorridentes, totalmente chapada. A sequência do depósito de escavadeiras figuraria sem esforço em qualquer clássico policial ou de terror, com direito a perseguições de carro que fazem a delícia de qualquer thriller do gênero. O cafetão é um mafioso sem remissão, e está bem representado por Romeo, mas há uma ênfase excessiva nos discursos sobre a necessidade de manter as garotas sob controle, defender a legalidade do negócio e o feminicídio que não conseguem ser assim tão cômicas, por mais que os discursos soem estereotipados e caricatos. A prostituição, aliada à distribuição de drogas, gera empregos e é uma das maiores receitas de renda da Espanha, afirma Romeo. Se é verdade, não há dados precisos, mas o livro El Proxeneta, do famoso cafetão espanhol conhecido como Miguel o Músico, prova que a ficção tem base na realidade, e em um negócio que gera, segundo dados do governo, cinco milhões de euros por dia, sendo que em 2016 foram identificadas 14 mil vítimas de tráfico. Muitas líderes dessas gangues são mulheres.

A serie já foi renovada. Ao final da primeira temporada, as três amigas conseguem escapar de seus algozes, mas com muita dificuldade, e não parece haver muita esperança para elas. Vamos ver como é que fica na segunda temporada, mas por enquanto impera o empoderamento feminino em sua versão neoliberal, ou seja, a única forma de se libertar é tomar o lugar do opressor, e reproduzir os mesmos comportamentos. Não há outra saída.

Imagens: Netflix/Tamara Arranz

luizalusvarghi

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