Luiza Lusvarghi

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Imagens de Divulgação

O documentário Regresso a Reims, de Jean-Gabriel Périot, foi totalmente montado com imagens de arquivos, numa edição primorosa e divertida – apenas as primeiras imagens foram feitas pelo diretor. Baseado no livro homônimo do filósofo francês Didier Eribon, o filme busca compreender a ascensão da extrema-direita na França partindo das memórias do pós-guerra.  Ao analisar a história da sua família e a vida social e intelectual a partir de 1950, Didier Eribon procurava também explicar muitas das questões do nosso tempo, e de que forma a classe trabalhadora francesa alinhada com as ideias socialistas, de esquerda e com o Partido Comunista, foi migrando para a extrema direita, identificada na Frente Nacional que elegeu Le Pen. A seleção e a edição de imagens percorre essa trajetória recuperando documentários sobre a época, para alinhavar essa narrativa, o que faz toda a diferença. Para começar, a narração biográfica de Eribon é interpretada pela atriz Adèle Haenel em voz off. Ao longo do filme, outras vozes se mesclam à dela para contar a história de outras famílias.

A primeira parte do documentário dá visibilidade a milhares de mulheres que viram suas vidas completamente transformadas durante a Segunda Guerra e após a queda do nazismo. A dificuldade de acesso à educação básica, as humilhações públicas daquelas que se relacionaram com os oficiais nazistas, a dupla jornada de trabalho, os abortos em condições precárias, toda essa via crucis relata o calvário da mulher moderna e, sobretudo, da proletária. O assédio sexual, e a falta de perspectiva, que também é a do marido, que muitas vezes acaba abandonando a família, estão presentes, bem como a hipocrisia das elites diante da pobreza. Os jovens cujos pais não tinham meios para criar seus filhos eram encaminhados para orfanato, e pela lei, aos 14 anos, obrigados a trabalhar. O filme é fiel aqui ao autor do livro, e se debruça com frequência sobre essa questão da educação, e de como os jovens trabalhadores eram praticamente eliminados das escolas, e induzidos a ver essa questão como uma conquista, o ingresso no mundo do trabalho em condições precárias como a única saída para uma vida adulta, reunindo depoimentos de jovens que consideram a vida profissional mais interessante do que a estudantil.

O documentário se inscreve, assim como a obra literária que o inspirou, na categoria de filme ensaio, fazendo-se valer de uma edição precisa e extremamente rica de referências de época, resultado sem dúvida de um trabalho árduo. Apesar das licenças com relação à obra, o diretor inicia o filme como o livro, após a morte do pai de Eribon, que então retorna à sua terra natal, Reims. Além da constatação de mudança de orientação política da família, Eribon aos poucos se dá conta de que seus conflitos domésticos não se dão apenas pela sua homossexualidade, e sim pela vergonha de suas origens sociais, e é isso que o estimula a escrever o ensaio.

No filme, o mergulho no passado perde o seu narrador testemunha, que se torna um comentário, mas o doméstico se funde no coletivo, em milhares de histórias como as da família de Eribon. A reflexão sobre as classes sociais, o sistema escolar, a criação de identidades, a sexualidade e a diferença de gênero, a política, a democracia e a mudança de padrões de voto da classe trabalhadora – refletida pela própria família do filósofo, que alterou a sua lealdade do Partido Comunista para integrar as fileiras da Frente Nacional, de Le Pen – estão lá. São muitos rostos que se erguem para contar essa história.

O documentário passa pelos intensos debates políticos, em que o palanque é substituído pelos estúdios de televisão, fenômeno contemporâneo que mereceu artigos de outro intelectual, Pierre Bourdieu, pelas falas contundentes dos líderes da extrema direita francesa, e fecha com imagens recentes das manifestações de rua em favor dos imigrantes, nos violentos confrontos entre estudantes, ativistas e a política francesa. O diretor assume a perspectiva de Eribon, entretanto, e vê a ascensão da extrema direita como uma tendência que pode ser freada. O medo de voltar à miséria assombra os trabalhadores e os impulsiona a votar em leis racistas.

Luiza Lusvarghi

Pesquisadora e critica de Cinema e Audiovisual, professora da Unicamp SP

About Luiza Lusvarghi

Luiza Lusvarghi

Pesquisadora e critica de Cinema e Audiovisual, professora da Unicamp SP
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