Luiza Lusvarghi

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 Um dos motivos que poderia te levar ao cinema, apesar da pandemia, para ver o novo filme do baiano radicado em Curitiba Aly Muritiba, Deserto Particular,  certamente é sua indicação ao Oscar de filme brasileiro para 2022, que acabou não seguindo adiante – o brasileiro está fora dos finalistas à categoria de melhor filme estrangeiro mais uma vez. A sinopse, simplista, resvala em clichês, e aparentemente faz intuir o desfecho. O policial Daniel (Antonio Saboya, em excelente desempenho), atormentado, solitário, decide partir de Curitiba para finalmente conhecer sua namorada virtual, a enigmática Sara (Pedro Fasanaro), e viaja por mil quilômetros até Sobradinho, na Bahia. Saboya, afastado da polícia por conta de uma denúncia de violência, desempenha bem o papel de antigalã  desajustado.

Na verdade o que faz as pessoas saírem encantadas do cinema é a busca pessoal do protagonista, um homem maduro em plena crise de valores e de identidade, movido pelo desejo de ser feliz e a sua luta para recuperar o prazer de ser o protagonista de sua própria história. Eu posso ser muitas coisas, diz Sara, ao responder à pergunta de Daniel sobre quem ela é de fato. Todos nós podemos mudar de vida, e de trajeto, em algum momento. E se não o fazemos é porque falta coragem, mas também vontade de seguir em frente, pois ao longo dos anos nada permanece no mesmo lugar.

O filme bem poderia ser precipitadamente classificado de road movie. Os créditos que tardam em chegar, as cenas de estrada, no entanto, são mais características de certa hibridação de gêneros ficcionais bastante em voga no cinema nacional recente que perpassa obras de diretores independentes como Lírio Ferreira, em Árido Movie e Acqua Viva, e entregam jornadas de autoconhecimento e anti-heróis, personagens de carne e osso. O Brasil é cenário e pano de fundo aqui da nossa problemática sociedade contemporânea, mas as questões que são colocadas poderiam estar em qualquer lugar do mundo, dai a naturalidade de ouvir numa balada o grande êxito brega Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler.

É isso que move a história de Muritiba. Quando nada acontece, e você se atira em direção ao futuro, esse desconhecido, descobre de novo o prazer de viver a vida. E esse movimento é interior, envolve reconhecimento de suas raízes, de sua história, não vem do outro. Todos os atores passam essa verdade em cena, e isso torna ainda mais interessante a viagem do espectador voyeur, que se arrisca com eles sem sair da poltrona.

Em seu longa de ficção anterior, Para Minha Amada Morta (2015), estrelado por Fernando Alves Pinto, o protagonista Fernando perde a mulher, e decide resgatar seus últimos momentos ao descobrir que ela não era a pessoa que acreditava conhecer, e que tinha outros relacionamentos, desejos que ele nem supunha existir. Essa trajetória leva o protagonista a uma redescoberta da vida, e o ensina a lidar com a perda de forma brutal, pois a memória da sua amada tem de morrer para que ele possa se libertar.

Aqui Muritiba faz outro caminho para retomar essa temática, a amada de Daniel-Saboya tem seus mistérios, e essa descoberta leva o protagonista a assumir os seus desejos, sem se projetar no outro, a reconhecer essas diferenças. Muritiba trabalhou como agente penitenciário por sete anos, e provavelmente dessa experiência extrai a força de seus personagens quando transita pelo universo dos presídios, que ele explora bem na série A Irmandade, e o curta O Pátio, das delegacias. A necessidade de borrar as linhas entre lei e ordem, o desequilíbrio e um pouco de caos podem ser essenciais para que uma pessoa passe a se aceitar em sua incompletude, e aceitar o outro como ele é.

luizalusvarghi

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