Luiza Lusvarghi

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Nightmare Alley: Revelado o primeiro trailer do suspense noir de Guillermo del Toro | LOUCOSPORFILMES.netO Beco Do Pesadelo, que dificilmente atrairá grandes públicos, é um filme que de certa forma destoa da carreira do cineasta mexicano Guillermo del Toro, trocando o fantástico que ele tanto preza, e lhe deu notoriedade por um realismo extremo que não acena com nenhuma esperança, ao contrário do original, rodado em 1947 com Tyrone Power vivendo o mentalista Stanton Carlisle. No original, Carlisle chega ao final como um geek e reencontra sua Molly, que o acolhe na miséria, é um desfecho que promete redenção. Já del Toro retoma a premissa do romance no qual foi baseada a obra, escrita por William Lindsay Gresham. É nas diferenças e semelhanças com o original que reside o talento do diretor mas também sua assinatura pessoal nesse remake que recupera o tom mais fatalista do romance que originou a adaptação dos dois filmes. A ambientação do circo lembra o universo poético e melancólico da série Freak Show, a quarta temporada de American Horror Story, exibida pela Fox, com escatologia e degradação humana explorada para consumo de um público ávido por sensações baratas numa nação que caminha para os seus golden years da década de 1950. Você tem de garantir ao público que ele se sinta superior às pessoas que eles pagam para ver, afirma o personagem de William Dafoe, Clem Hoatley, o businessman do show da vida que representa o circo de horrores que ele administra ao atento Carlisle (Bradley Cooper). Quanto mais decadência, melhor.

Crítica | O Beco do Pesadelo – Guillermo Del Toro entrega suspense noir complexo e um tanto cansativo – Club NationAs várias camadas que del Toro acrescenta à obra original, no entanto, aprofundam o noir da narrativa, recuperada aqui em seu contexto original, da década de 40, quando foi exibido em duas versões, branco e preto e cores, sendo a primeira a mais popular. Dirigido por Edmund Goulding no auge do Código Heyes, a adaptação assinada por del Toro ganha uma aura ainda mais interessante ao explorar as personagens femininas sem as amarras do moralismo hollywoodiano de então. O grande protagonista do filme e do romance é Carlisle, o protagonismo masculino é a tônica do noir, e se na obra original as mulheres não mereciam grandes cenas, aqui elas são coprotagonistas de relevo. Para ele, naturalmente, elas não passam de instrumentos de ascensão social, como a madura Zeena (Toni Collette), que o inicia na vida de circo e de telepata, por meio das cartas e do seu acesso ao acervo de seu companheiro alcólatra Pete, enquanto que a mocinha interpretada por Rooney Mara, Molly, é o arquétipo da vítima indefesa que pode ser útil para o protagonista, mas logo se transforma em obstáculo. As mocinhas dão muito trabalho e não estão em sintonia com a sociedade capitalista moderna, preferem uma boa história de amor. A outra característica forte do protagonista masculino do noir também está presente – a crise de identidade, a dificuldade de adaptação ao seu destino dentro dessa mesma sociedade, a ambivalência diante da figura paterna, se sua representação.

Crédito: Divulgação

Assim, como uma mosca se afoga no mel, ele é seduzido de imediato pela femme fatale interpretada por Cate Blanchet, a Lilith Ritter, que tem o nome bíblico da anti-Eva, a lua negra, o arquétipo feminino sombrio do Talmud. Como já enfatizado por diversos estudos sobre a função da femme fatale no noir, ela representa a mulher do pós-guerra que é independente, que não busca um homem para resolver a sua vida financeira e nem amorosa, pelo contrário. Sua representação nas telas dos clássicos noir é um fenômeno bastante associado ao backlash, ao medo que sua presença desperta nos homens e nas sociedades patriarcais, mas também à

Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas": Guillermo del Toro regressa com cinema negro "sobre a ansiedade do nosso tempo" - Atualidade - SAPO MagNão é o dinheiro, nem o amor que ditam os rumos da vida de Ritter, ela é movida pelo poder, pela ambição, tanto quanto ele, mas ela tem seu próprio projeto de vida. Eu não preciso de você, ela diz, e nem de ninguém, como veremos adiante. A cena em que ele a humilha publicamente, colocando-a na posição desconfortável de mulher abusada, e ressentida, sela o destino de Carlisle. Para ele, um predador nato, ela é “o alvo”, e ele não percebe a viscosidade da teia. A forma como ela enreda o protagonista, que apesar de ser enganado, não pode jamais ser colocado como mera vítima, reafirma esse conservadorismo da representação feminina, sem glorificar o protagonista. A cada novo encontro, ela extrai do mentalista o que ela classifica como “verdade”, mas que em realidade são os últimos vestígios de sua identidade, a sua degradação. O ator, que está longe do carisma de um Tyrone Power, é beneficiado por esse traço – o de não ser um galã glamuroso – em sua atuação impecável do trapaceiro Carlisle. E Blanchet, apesar de sua interpretação apenas correta, em que a personagem desaparece sob qualquer traço que possa revelar conflitos, exceto pela referida cena, acaba se tornando uma vilã, revelando não apenas a moral da história, mas também a verdadeira face do sucesso em uma sociedade que não está interessada em recuperar ninguém, e nem em construir nada, apenas em conquistar o poder. Ritter representa o sistema, e ela se sagra vencedora. A mocinha Molly, entretanto, não é apenas uma jovem romântica e iludida, ela abandona Carlisle sem receio de ser feliz, sozinha ou acompanhada. Como ela mesma afirma, ela conhece seus limites, e não está interessada em se autodestruir, em violência, nem em mutilações. A vidente Zeena tampouco chora pelos homens que se foram, pela vida que se escoa como as cartas entre os dedos. O painel que del Toro apresenta nesse remake ressignifica os personagens e os umbrais do noir por vezes pudico do período clássico, ainda que não os ultrapasse.

CINE JARDINS | Cinema com Conteúdo

Luiza Lusvarghi

Pesquisadora e critica de Cinema e Audiovisual, professora da Unicamp SP

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Pesquisadora e critica de Cinema e Audiovisual, professora da Unicamp SP
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