Luiza Lusvarghi

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A sua vida está chata, seu chefe é um imbecil, sua melhor amiga só te recrimina, e ainda arruma um blind date para você que não funciona, sua família desaprova tudo que você faz e insiste em ver você como uma garota mal resolvida, mesmo sendo uma mulher independente. E aí, surge um cara sedutor, que desafia as convenções em que você está atolada, e, além de tudo, transa maravilhosamente bem. Que mulher nunca enfrentou algo assim? Difícil, porque o machismo é estrutural sim, e mesmo tendo consciência e uma posição privilegiada – mulher branca, de classe média, com universidade, emprego estável – é raro encontrar quem nunca vacilou. Ruth Wilson faz a anti-heroína Kate de Coisas Verdadeiras (True Things, 2021), dirigida pela diretora britânica Harry Wootliff, em seu segundo longa-metragem,  baseado no romance de Deborah Key Davies True Things About me. Para quem viu Wilson interpretando Alice Morgan, a vilã psicopata da aclamada série da BBC Luther, estrelada por Idris Elba, a performance da protagonista é uma grata surpresa. Kate tem um perfil delicado, é insegura, sua personagems é repleta de nuances e conflitos que espelham dilemas da mulher contemporânea. Blond, o nome com o qual ela salva o contato de seu amante , é interpretado por Tom Burke, mais conhecido como o detetive Cormoran Strike de J.K Rowlands, a autora de Harry Potter, na série Strike, da HBO . Burke faz o tipo grosseiro e abusivo que tem seu charme, com o lábio marcado por uma cicatriz  (verdadeira) de um lábio leporino que lhe dá um ar vulnerável em alguns momentos, e em outros faz dele uma criatura ameaçadora e instável. O papel de Blond pertencia inicialmente a Jude Law, que saiu do cast mas assina a produção do filme. O clima de terror psicológico é bem trabalhado pela diretora, com a câmera fazendo de Blond uma sombra borrada e assustadora em meio aos devaneios da protagonista em suas aventuras sexuais a dois, pela natureza, estrada afora. Quando Blond aparece, nunca sabemos o que vai acontecer, dele emana uma aura de violência quase natural.

O filme representa bem a personagem Kate, seus anseios por ser aceita, seus medos, mas em algum momento se alonga demais nessa estruturação, de forma quase repetitiva. O despertar de Kate para a vida e seu processo, doloroso, de autodescoberta, ficam quase que restritos ao final do filme. E são sua melhor parte, o que provoca uma certa tensão que concorre para o clímax. Como ela pode aguentar aquele homem ausente, cínico, que a convida para uma festa, chega com ela e simplesmente desaparece sem explicações plausíveis? A subserviência dela incomoda e esse sem dúvida é o objetivo da diretora ao mostrar o cotidiano da personagem.

Há uma cena em que ela dança sozinha no casamento da irmã de Blond, na Espanha, para onde o improvável casal segue, em uma tentativa de finalmente engatar um relacionamento sério. O trecho lembra O Abismo Prateado, obra primorosa sobre a dor de um pé na bunda dirigida por Karim Ainouz. A diferença no filme de Wootliff é que Kate se recupera e reage a tempo. Porque são perspectivas diferentes. Mais do que a discussão sobre o abandono, que é vivido como um fato no primeiro, que trata da ruptura insólita de um casamento, aqui temos a questão da submissão de Kate a um relacionamento que rouba sua vida, sem emprego, e sua autoestima de forma inexplicável. Os motivos são milenares. Uma mulher bem-sucedida tem de provar o tempo todo que é profissional, mas tem de ter um marido e uma relação estável. Ao final do filme, quase como um monólogo, Blond diz mecanicamente que está pensando em ter filhos, uma família. O sorriso irônico de Kate nos faz perceber que ela acordou.  E ela finalmente se vai, rumo ao autoconhecimento, dona de sua própria história. O filme estreou no Festival de Veneza deste ano, e está na programação da 45ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, que começa a partir de 21 de Outubro. @mostrasp #45mostra

Luiza Lusvarghi

Pesquisadora e critica de Cinema e Audiovisual, professora da Unicamp SP

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Luiza Lusvarghi

Pesquisadora e critica de Cinema e Audiovisual, professora da Unicamp SP
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